sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Cesare Battisti: terrorista ou perseguido político?


Quem tem acompanhado o noticiário sobre a tentativa do governo italiano de extraditar do Brasil, o ex-integrante do grupo de extrema-esquerda PAC (Proletari armati per il comunismo) Cesare Battisti, acredita que se trata apenas de um simples terrorista e não um perseguido político pelo governo neofascista de Silvio Berlusconi.
Para inicio de conversa, o blogueiro não tem nenhuma estima por Battisti, mas antes de fazer um julgamento prévio, que é característico ao senso comum, é necessário fazer um retorno ao passado sobre a história italiana do fascismo ao pós-guerra.

O Fascimo e o pós-guerra

A Itália foi o segundo país europeu no século XX que implantou uma ditadura militar burguesa em 1921 para impedir o avanço das mobilizações populares, e Benito Mussolini foi o líder do movimento que ficou conhecido como fascismo. O fascismo mais tarde, serviu de exemplo para a introdução de novas ditaduras de extrema-direita, como foi o caso do nazismo na Alemanha em 1933, liderado por Adolf Hitler, o franquismo na Espanha, em 1939 e, o salazarismo em Portugal em 1934. Após a segunda guerra mundial, o nazi-fascismo foi derrotado e deu-se inicio a era da redemocratização, exceto Espanha e Portugal que continuaram governados por regimes ditatoriais até meados dos anos 70, em razão de não terem participado da guerra.
Durante o pós-guerra, os Estados Unidos ofereceram ajuda econômica aos países europeus destruídos pela guerra, através do Plano Marschall, que permitiu a recuperação das econômias européias em um período de apenas dez anos. A época ficou marcada pela expansão econômica e demográfica, a consolidação do Estado integracionista (Bem-estar social) e a democracia representativa.
A era pós-fascista na Itália foi considerada a era da esperança que ficou conhecida como "il miracolo italiano" durante os anos 50 até a metade dos anos 60. O país abandonou a monarquia em 1948, e se tornou uma república parlamentarista, construindo uma das melhores Constituições do mundo. A urbanização, o crescimento industrial e de serviço deu origem a expansão da sociedade de consumo. A televisão e o automóvel foram os carros-chefes dessa nova sociedade italiana em uma época que ficou caracterizada por escassos conflitos sociais.

Automóveis o simbolo da modernidade italiana

A partir da metade dos anos 60, o Estado integracionista começou a entrar em crise por três motivos: 1) o crescimento econômico diminuiu; 2) os trabalhadores, em especial os operários da indústria, exigiam uma maior participação nas atividades econômicas em razão da boa qualificação que tornou mais cara a mão-de-obra; 3) os capitalistas aumentaram a transferência de capitais para os países menos desenvolvidos para obter mão-de-obra mais barata. Esse cenário permitiu o arrefecimento das lutas de classes, a partir de 1968 e, que desde o biênio vermelho 1919-1920 não aconteciam.

Das revoltas estudantis e operárias de 1968-1969


1968 foi o ano das revoltas estudantis que sinalizou as crises políticas, sociais, econômicas e culturais que contribuiu para a formação de uma nova mentalidade. O capitalismo, a burocracia, a sociedade de consumo, os meios de comunicação, os partidos políticos, os sindicatos, o sexismo, o racismo, os valores tradicionais tudo era motivo para a contestação.
Se nos Estados Unidos, os estudantes protestavam contra a guerra do vietnã, os negros contra o racismo e os operários contra a exploração que eram submetidos; na França, os estudantes iniciaram um protesto pelo direito de fazer sexo em um ambiente universitário que reproduziam os mesmos valores tradicionais da sociedade, o estopim deu origem ao maio francês. A novidade de 1968 foi por em xeque os valores tradicionais que serviam apenas para reproduzir a repressão seja política, econômica, social, cultural e sexual.
Apesar da agitação estudantil tivesse menor intensidade na Itália em 1968, curiosamente nos anos seguintes, os protestos estudantis que reinvidicavam uma maior participação de gerir o processo de organização dos cursos e desenvolver assembléias para permitir o direito de estudo para todos em igualdade, ganharam impulso a partir da agitação do movimento feminista e principalmente da classe operária.
As mulheres através de lemas como "tremate, tremate le streghe son tornate" (tremam, tremam as bruxas voltaram) exigiam direitos iguais em todos aspectos cotidianos, em especial na família e no ambiente de trabalho colocando em discussão os valores tradicionais sobre o papel feminino.

As mulheres entram na cena política

As agitações operárias que iniciaram em 1969, colocaram em risco o poder dos partidos de esquerda e dos sindicatos, pois neles os trabalhadores por meios de suas lutas, denunciavam o caráter burocrático dessas organizações e não as reconheciam como seus representantes. O velho lema de Marx " A emancipação da classe trabalhadora é obra deles mesmos" permitiu o desenvolvimento da autonomia operária, ou seja, os próprios trabalhadores através das comissões de fábricas, comitês de luta, conselhos operários e entre orgãos horizontais geriam e desenvolviam por si mesmos as próprias lutas. Esse fenômeno foi denominado autonomismo que assustou profundamente não apenas a burguesia, mas também as burocracias partidárias e sindicais. As lutas autônomas desenvolveram em muitos países europeus, especialmente em Portugal, o que permitiu a derrocada da ditadura fascista portuguesa em 1974.

O autonomismo e a reação do terrorismo da direita fascista


O poder operário lema dos autonomistas

As lutas autonômas na Itália, iniciadas em 1969, foi uma resposta a situação sócio-econômica que vivia o país. As dificuldades de manter o alto custo do estado de bem-estar social, a crise na agricultura, o rápido desenvolvimento das cidades, o aumento de salários durante o boom econômico e a transferência de capitais aos países subdesenvolvidos foram razões suficientes para o Estado italiano de aumentar as taxas, cortar gastos e os bancos de restringir o crédito incrementando dessa forma o desemprego e a inflação.
Nesse contexto, os protesto dos trabalhadores ficaram mais acessos dando inicio ao autunno caldo (outono quente). Durante os meses de setembro, outubro, novembro, as greves tornaram-se bastante radicais, atigindo o seu apogeu e os trabalhadores obteram uma grande vitória: redução de horário e melhores condições de trabalho até conquistar o estatuto dos trabalhadores que regulamentava os poderes patronais, aumentando a liberdade, a segurança, os direitos políticos e sindicais dos trabalhadores.

Greve dos trabalhadadores no outono quente em 1969

Em resposta ao avanço da classe trabalhadora, grupos terroristas de extrema-direita, financiados por setores dos serviços segretos, muito deles ocuparam cargos importantes durante o fascismo e, também de seitas maçonicas, máfia, e entre outros deram inicio a estratégia de criar tensão social para colocar as bases de aplicar um golpe de estado que foi tentado em 1970, através de Junio Valério Borghese, militar fascista que ocupou cargos importantes durante o fascismo e que construia grupos armados clandestinos de direita.
A onda terrorista de direita iniciou antes mesmo da explosão do autunno caldo. No dia 25 de abril de 1969, data que comemorava a libertação do fascismo, houve uma explosão de uma bomba na feira Campionaria de Milão. Meses depois, em dezembro do mesmo ano, uma bomba matou 16 pessoas e feriu uma centena na Piazza Fontana, em Milão. Da mesma forma, outros sangrentos episódios, como dois atentados em 1974, na Praça della Loggia em Brescia e no trem italicus ou no massacre na estação de Bolonha em 1980, em que mais de 80 pessoas morreram. Em todos eles, os fascistas não reivindicaram os atentados.

Capa do jornal corriere della Sera sobre o terrorismo fascista

Todos esses atentados tiveram origem das mesma matriz, foram idealizados e praticados por grupos de extrema-direita. Mas curiosamente nenhum deles foram punidos. Apesar disso, fica evidente que os fascistas gozavam de absoluta impunidade e tiveram apoio e proteção de certos setores do estado. Os serviços secretos italianos e até mesmo extrangeiros como a CIA são suspeitos e, muito provavelmente a famigerada Loggia maçônica P2 de Licio Gelli, dissolvida em 1982, tinha como um dos maiores financiadores, o atual primeiro ministro italiano Silvio Berlusconi, todos os esses grupos deram sustentação aos atos terroristas. A Loggia P2 financiou o regime militar argentino (1976-1983) e tinha como cliente o almirante Emilio Massera, que fazia parte da tríade dos ditadores junto com Jorge Rafael Videla e Orlando Agosti.
O terrorismo de direita deu origem ao terrorismo de esquerda que surgiu por esses motivos; 1) a luta constante dos grupos autonomistas contra os sindicatos, 2) a falência dos partidos de esquerda como foi o caso da conciliação do PCI (Partido Comunista Italiano) junto a DC (Democracia Cristã); 3) A reação contra o terrorismo de direita e ao estado que dava-lhe suporte e 4) A prática da violência gratuída como forma de expressão.

As Brigadas vermelhas e il terrorismo rosso

Nos anos 70, os partidos comunistas na Europa Ocidental passaram por uma reformulação, em decorrência da evasão de militantes ocorrida pelas sucessivas intervenções militares soviéticos nos países que estavam sobre o satélite.
O modelo de partido único é contestado e os aparelhos burocráticos dos partidos comunistas ocidentais progressivamente tornaram-se autônomos ao modelo russo, dessa forma surgiu o eurocomunismo. A novidade estava no fato de o eurocomunismo seguir a mesma tendência gradualista que caracteriza a social-democracia. A defesa do parlamentarismo, do estado burguês (neutro), a defesa dos interesses nacionais (leia-se burguesia nacional) e das "frentes populares" contra o fascismo.
Tal novidade não foi digerida por muitos militantes leninistas que ficaram desapontados com o PCI, somada ao burocratismo e imobilismo das centrais sindicais, a recusa dos autonomistas de seguirem aos ordens de grupos vanguardistas o divisionismo do movimento operário, isso sem falar no terrorismo fascista, abriram caminho para estudantes e intelectuais de criar organizações armadas terroristas com a suposta missão de "libertar o povo".
A mais importante organização terrorista foi as Brigate Rosse (Brigadas Vermelhas) que cometeu diversos atos terroristas contra autoridades políticas, policiais, empresariais com a missão de arrecadar fundos para libertação de presos. O ato mais emblemático do movimento foi o sequestro e o assassinato do líder da democracia cristã, o primeiro ministro italiano Aldo Moro, em 1978 , cujo partido era aliado ao partido comunista no governo.

A bandeira das Brigadas Vermelhas

O terrorismo vermelho se diferenciava do terrorismo negro (fascista) por ter como alvo não atacar as pessoas no espaço público, e sim as autoridades e/ ou grupos que supostamente estariam envolvidas com grupos fascistas. Todavia, os grupos terroristas não se restingiam apenas isso; o PAC (Proletariado Armati per il Comunismo) de Cesare Battisti lutaram contra a estrutura carcerária e todos aqueles que eram considerados membro das forças de ordem.
O assassinato de Aldo Moro deu inicio ao fim do terrorismo vermelho, em razão do repúdio da sociedade italiana contra o terrorismo, seja ele de direita ou de esquerda. No entanto, apenas os esquerdistas foram condenados e muitos dos seus integrantes foram condenadas a prisão pérpetua e inclusive foram torturados, já a direita fascista praticamente permaneceu impune. Deve ser levado em consideração, que 70% dos atos terroristas nos anos 70, foram praticados por grupos de direita, enquanto a esquerda realizou o restante. Os anos setenta ficaram conhecidos na Itália como gli anni del piombo (os anos de chumbo).

E Battisti?

Battisti sob o foco

Cesare Battisti foi preso pela primeira vez em 1972 por assalto em Frascati, uma cidade na província romana. A sua adolescência foi marcada por atos gangsters e , após ter realizado mais dois assaltos, foi preso em Udine em 1977, onde encontrou o ideologo do PAC, Arrigo Cavallina que o integrou na organização.
Após a transferência a Milão, Battisti integrou aos grupos que assaltavam bancos e supermercados e consequentemente homícidios de comerciantes pertencentes as forças de ordem. A acusação contra Battisti é que ele cometeu 4 assassinatos:
Antonio Santoro, agente penintenciário; Pierluigi Torregiani, joalheiro;
Lino Sabbadin, açogueiro; Andrea Campagna, agente do Digos, polícia de estado.
Todavia, deve ser destacado que as acusações contra Battisti estão baseadas apenas a um integrante do PAC Pietro Mutti, um dos tantos pentiti (arrependidos) que a defesa acusa de ter entegrado o companheiro para descontar a sua pena concedida a lei antiterrorista italiana. Battisti nega os assassinatos, afirmando que havia saído do PAC, após a morte do primeiro ministro Aldo Moro. Segundo ele, Mutti foi coagido por meio de torturas a confessar os assasssinatos que são atribuídos.

Os anos de chumbo na Itália dos anos 70

A diferença das brigadas vermelhas e o PAC era que o primeiro era uma organização de estilo militar centralizado com caráter leninista o segundo era descentralizado, flexível característico ao autonomismo.
Em 1979, Cesare Battisti foi preso e sentenciado a doze de prisão, sem ter qualquer relação com os assassinatos que atualmente é acusado. Fugiu em 1981, para a França com a ajuda de Pietro Mutti, o futuro pentito que atribuiu a ele essas acusações. Em seguida, foi para o México e retornou a França, por meio da Doutrina Mitterrand, onde começou a carreira de escritor, mas em 1991, o governo italiano pediu a sua extradição e ficou preso durante 4 meses na prisão de Fresnes até que a sua extradição foi negada.
A partir do governo Jacques Chirac em 2004, a justiça francesa mudou a orientação e liberou a extradição. Desde então, Battisti é considerado terrorista e perseguido pelo governo italiano.
Os atos praticados pelo terrorismo de esquerda italiana, especialmente das Brigadas Vermelhas, devem ser condenados, no entanto, é necessário levar em consideração 3 coisas:
1) O terrorismo de direita na Itália, salvo raras exceções, jamais foi punido e certos integrantes do governo Berlusconi estiveram envolvidos nos atos terroristas. Vale lembrar que os meios de comunicação na Itália estão nas mãos de Berlusconi.
2) Embora, a Itália estivesse teoricamente sob "Estado de direito", na prática vivia no submundo político do terrorismo, das máfias, das seitas maçônicas, dos serviços secretos, muito semelhantes aos estados de sítios característicos das ditaduras militares.
3) Boa parte dos integrantes do terrorismo vermelho foram condenados a prisão pérpetua e inclusive foram torturados. Alguns foram beneficiados com a lei de delação.
Resumindo o caso Battisti tem dois pesos e duas medidas. Cesare Battisti pode até ser culpado das acusações que lhe atribuem, mas muitos integrantes do terrorismo vermelho, em especial das brigadas vermelhas, fizeram coisas muito piores e nem por isso tem todo esse fuzuê. Isso sem falar na extrema-direita que ocupa cargos importantes no governo Berlusconi e está livre leve e solta. Se trata mais de caso político do que propriamente judicial.
O caso Battisti serve de reflexão para não cair na velha tática do denuncismo que caracteriza o jornalismo atualmente.

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